quinta-feira, 3 de maio de 2012

IMPUGNAÇÃO DE NORMAS REGULAMENTARES


A existência de um contencioso das normas administrativas em Portugal, sui generis nos ordenamentos jurídicos europeus, que ora não autonomizam o contencioso regulamentar do contencioso de actos administrativos, ora prevêem-no de forma muito restrita, surge no âmbito da reforma de 1984/85. Em boa hora, diga-se: pois para além de diversas fontes inspiradoras, que em suma prendiam-se com reacções ao sistema instituído até então – sistema de controlo de regulamentos muito limitado – a partir de 1997, com a 4.º revisão constitucional, passaria, por força do novo n.º 5, artigo 268.º CRP, a estabelecer-se o direito dos cidadãos a impugnar as normas administrativas com eficácia externa lesivas dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Dir-se-á que o legislador jus administrativo antecipou-se, e bem.

A título prévio, importará delimitar o conceito de regulamento administrativo, a fim de, com segurança, podermos afirmar que tipo de normas integra esta modalidade de acção administrativa especial. Conforme nos ensina Vasco Pereira da Silva[1], a partir do conceito de acto administrativo que é dado pelo artigo 120.º CPA, a contrariu sensu pode-se afirmar que são regulamentos administrativos todas as disposições unilaterais que sejam só gerais, ou só abstractas, ou que possuam ambas as características[2]. E esta precisão é importante, dado que a partir dela poderemos considerar as disposições-plano como verdadeiros regulamentos administrativos[3] – embora se admita que possuem uma estrutura normativa diferente – pois as suas disposições gozam sempre quer de generalidade, quer de abstracção, quer ainda de ambas as características[4].

Em síntese, a impugnação de normas administrativas, regulada nos artigos 72.º ss CPTA, é aplicável a todas as actuações jurídicas[5] gerais e abstractas, ou que possuam apenas uma dessas características, emanadas de autoridades públicas, ou de particulares que com ela colaborem, no exercício da função administrativa.

Com a reforma do contencioso administrativo de 2002/2004, uniformiza-se o seu regime jurídico, acabando com a sobreposição dos dois meios processuais anteriormente existente – o meio processual genérico e o meio processual especial, surgindo assim uma subespécie da acção administrativa especial, qualificada em razão do pedido de impugnação de normas jurídicas, mantendo-se, porém, a possibilidade de apreciação incidental dos regulamentos, a propósito do pedido de anulação de actos administrativos, no âmbito da mesma acção especial.

Assim se estabelece um regime uniforme, tomando como “padrão” o anterior meio processual genérico, com as seguintes alterações e restrições:
- aplicabilidade imediata das normas regulamentares, ou
- existência de três casos de desaplicação, que acresce, e isto é novidade da última reforma,
- legitimidade:
            - regra geral: artigo 73.º n.º1 CPTA – em todos os casos e independentemente de quem propõe a acção, a declaração de ilegalidade depende da existência de três casos concretos em que “a aplicação da norma tenha sido recusada por qualquer tribunal (…), com fundamento na sua ilegalidade”
            - Acção pública: artigo 73.º, n.º 3 CPTA – O Ministério Público (MP) pode pedir a declaração de ilegalidade, mesmo quando não se verifiquem os três casos concretos de desaplicação, não se estabelecendo qualquer condição quanto à eficácia das normas jurídicas. Assim, o MP pode impugnar normas jurídicas de eficácia imediata, bem como aquelas que dependem de acto administrativo ou jurisdicional de execução.
Além disso, nos termos do artigo 73.º, n.º 4 CPTA, o MP tem o ónus de pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral quando tenha conhecimento de três decisões de desaplicação de uma norma com fundamento na sua invalidade
            - Acção para defesa de direitos e acção popular: artigo 73.º, n.º 2 CPTA – aqui a declaração de ilegalidade também pode ter lugar, quando se trate de norma jurídica imediatamente exequível, sem a verificação dos três casos desaplicados, embora, a declaração proferida produza efeitos apenas no caso concreto. No fundo, neste caso, é pedida a apreciação do regulamento a título incidental do pedido de desaplicação ao caso concreto (que é o pedido principal)[6].

Relativamente à causa de pedir, conforme artigo 72.º, n.º 1 CPTA, a mesma pode ser a legalidade directa como indirecta. Ou seja, tanto pode estar em causa “vícios próprios” dos regulamentos, como “derivados da invalidade de actos praticados no âmbito do respectivo procedimento de aprovação”.

Quanto aos efeitos da sentença de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral (artigo 76.º, n.º 1 CPTA), saliente-se que a mesma goza de eficácia retroactiva e repristinatória, mas não afecta os casos julgados, “nem os actos administrativos que entretanto se tenham tornado inimpugnáveis, salvo decisão em contrário do tribunal, quando a norma respeite a matéria sancionatória e seja de conteúdo menos favorável ao particular” (artigo 76.º, n.º 3 CPTA). Sem embargo de, em face do n.º2, do artigo 76.º CPTA, o tribunal poder “determinar que os efeitos da decisão se produzam apenas a partir da data do trânsito em julgado da sentença quando razões de segurança jurídica, de equidade ou de interesse público de excepcional relevo, devidamente fundamentadas, o justifiquem”.

No que respeita aos pressupostos processuais específicos do pedido de impugnação de normas jurídicas, importará referir, em primeiro lugar, a íntima ligação existente entre a legitimidade e a questão da procedibilidade. Assim, tratando-se de acção pública, são impugnáveis todos os regulamentos, sejam ou não exequíveis por si mesmos e tenha ou não havido prévia decisão judicial de não aplicação em três casos concretos (artigo 73.º, n.º 1 e 3 CPTA). Já se se tratar de acção para defesa de interesses próprios ou de acção popular, exige-se que tenha havido anteriormente três sentenças de aplicação no caso concreto (artigo 73.º, n.º 1 CPTA) ou que se trate de regulamento imediatamente exequível, sendo certo que, neste último caso, a declaração de ilegalidade só produz efeitos ao caso concreto (artigo 73.º, n.º 2 CPTA). Em segundo lugar, relativamente ao interesse, condição de legitimidade, o mesmo não tem de ser actual podendo apenas ser futuro (artigo 73.º, n.º 1 CPTA), dispensa-se, portanto, o carácter “directo” de interesse como condição de legitimidade. Por fim, quanto à oportunidade do pedido de impugnação, nos termos do artigo 74.º CPTA, não se encontra sujeito a prazo, podendo a declaração de ilegalidade ser pedida a todo o tempo.


Em suma, fundamental será reter:
1.      Pedido
Pede-se ao tribunal que este declare ilegais certas normas.
2.      Causa de pedir
Violação da lei pelas normas regulamentares.
3.      Competência
Se a norma impugnada for da autoria de uma das entidades constantes do artigo 24º/1 a) do ETAF a competência pertence ao STA.
Nos restantes casos a competência é dos Tribunais Administrativos de Círculo.
4.      Legitimidade
i)        Activa (art.73º):
         Quem tenha sido ou venha a ser prejudicado pela aplicação da norma;
         Entidades referidas no artigo (art. 9º/2);
         Ministério Público, quer a requerimento das entidades que constam no artigo 9º/2, quer como dever legal;
ii)      Passiva: entidade que produziu a norma ilegal (artigos 24º, 37º, 44º do ETAF)
5.      Oportunidade
O artigo 74º estabelece a inexistência de um prazo, pelo que a declaração de ilegalidade de normas pode ser pedida a todo o tempo.
6.      Pressuposto processual específico
Artigo 73º:
         Para pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, a norma tem que ter sido desaplicada, com fundamento em ilegalidade, em três casos concretos;
         O pressuposto vale só quando o autor não é o Ministério Público e quando a norma não é directamente exequível;
         Se o Ministério Público tomar conhecimento de três casos em que uma norma é desaplicada tem o dever de pedir a sua declaração de ilegalidade com força obrigatória geral;
         Se o autor não é o Ministério Público e a norma é directamente exequível, a declaração de ilegalidade circunscreve-se apenas ao caso concreto.

Bibliografia:
SILVA, Vasco Pereia, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo», 2ª. edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 411-430.

Rui Miguel Cruz
Aluno n.º 19434
Subturma 1





[1] SILVA, Vasco Pereia, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo», 2ª. edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 413.

[3] Não existe unanimidade na doutrina quanto a esta questão. Autores há que defendem que os planos reconduzem-se a actos administrativos, pois defendem que “alguns deles possuem carácter geral, mas concreto. Outros há que advogam que as disposições-plano constituem antes um tertium genus, enfim.
[4] SILVA, Vasco Pereira, op. cit., p. 414.
[5] Independentemente da forma do acto adoptada, conforme artigo 52.º, n.º 1 CPTA, pois o que releva é o conteúdo e não a forma do acto. Isto é, mesmo que contido em diploma legislativo ou regulamentar, se verificarmos que se trata de um acto materialmente administrativo (individuais e concretos), ficam excluídos desta previsão normativa.
[6] Críticas contundentes são tecidas por Vasco Pereira da Silva, defendendo a inconstitucionalidade – bem como a incompatibilização com o direito europeu – da possibilidade prevista de declaração de ilegalidade concreta (artigo 72.º, n.º 2 CPTA), defendendo, portanto, a generalização do regime da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral (artigo 73.º, n.º 1CPTA) a todas as modalidades de impugnação de normas jurídicas, independentemente do seu autor. cf: SILVA, Vasco Pereira, op. cit., p. 421-427.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.