quinta-feira, 24 de maio de 2012

CONDENAÇÃO À PRÁTICA DO ACTO DEVIDO
(algumas considerações)



Uma das principais manifestações de mudança de paradigma na lógica do Contencioso administrativo foi a consagração de uma acção de condenação à prática do acto administrativo devido (arts. 66º e seguintes do CPA), enquanto modalidade de acção administrativa especial (qualificada em razão do pedido).

Antes, em razão do princípio de separação de poderes o juiz só podia anular actos administrativos, mas nunca poderia dar ordens de qualquer espécie às autoridades administrativas.

A invocação da interpretação politica francesa do princípio da separação de poderes, de tão repetida, quase que se transformava em argumento de ordem jurídica, fazendo esquecer que assentava na confusão entre julgar e administrar, assim como no equívoco de considerar que condenar a administração era a mesma coisa que praticar actos em vez dela, ou que substituir a actuação das autoridades administrativas.

Ora, é sabido que uma coisa é condenar a Administração à prática de actos administrativos devidos, decorrentes da preterição de poderes legais vinculados,  o que corresponde à tarefa de julgar; completamente diferente será o tribunal praticar actos em vez da Administração, ou invadir o domínio das escolhas remetidas por lei para a responsabilidade da Administração no domínio  da discricionariedade administrativa, que corresponde  ao âmbito da tarefa de administrar e em que, por isso, já pode fazer sentido invocar o princípio da separação de poderes.

Refira-se, relativamente ao referido poder discricionário, que ele não pode ser considerado um poder à margem da lei, ou como uma excepção ao princípio da legalidade mas sim como um modo de realização do direito no caso concreto mediante escolhas que, sendo da responsabilidade da administração, não são ilimitadamente livres, pelo que é sempre possível o controlo jurisdicional dos respectivos parâmetros (competência, fim, proporcionalidade, igualdade, imparcialidade…..), daí podendo resultar sentenças de condenação (na pedida dos aspectos vinculados do poder discricionário).

A admissibilidade de sentenças de condenação da administração não só não é contrária a nenhum dos princípios da Justiça Administrativa, não havendo por isso que invocar o princípio de separação de poderes em vão, como é mesmo a forma mais adequada para reagir contra comportamentos administrativos que, por acção ou omissão, lesam direitos dos particulares decorrentes da negação de actos legalmente devidos.

Na sequência da revisão constitucional de 1982, o legislador da reforma do Contencioso Administrativo de 1984-85 vai adoptar um novo meio processual: a acção para reconhecimento de direitos legalmente protegidos (art. 69º LEPTA). Esta nova acção, destinada a assegurar a tutela efectiva dos direitos dos particulares nas relações jurídicas administrativas, não poderia ser considerada como de aplicação meramente supletiva ou subsidiária, sobretudo se interpretada à luz dos preceitos constitucionais, mas antes se colocava numa relação de complementaridade com os demais meios processuais. O que permitia abrir caminho na lógica do contencioso de mera anulação e possibilitar a condenação da Administração na prática de actos administrativos devidos, nomeadamente em caso de omissão ilegal, em que o particular poderia optar entre intentar a acção para o reconhecimento de direitos ou utilizar antes a via tradicional do recurso de anulação do indeferimento tácito.

É com a revisão de 1997 que a possibilidade de determinação da prática de actos legalmente devidos é estabelecida de forma expressa como componente essencial do princípio da tutela jurisdicional plena e efectiva dos direitos dos particulares em face da Administração, o qual constitui o novo centro do Contencioso Administrativo (art. 268º/4 CRP). Possuindo natureza de direito fundamental esta disposição era imediatamente aplicável (art. 18º/1 CRP).

Existem, assim, duas modalidades de acção administrativa especial de condenação à prática do acto devido, consoante esteja em causa a necessidade de obter a prática de um “acto administrativo ilegalmente omitido ou recusado” (art. 66º/1 CPA). Modalidades de acção que correspondem aos dois pedidos principais que podem ser suscitados através de mecanismo processual: o de condenação na produção de acto administrativo (de conteúdo) favorável ao particular, em substituição de acto desfavorável anteriormente praticado.

Importante será não cair no erro clássico do Contencioso Administrativo de confundir o pedido apenas com a sua dimensão de pedido imediato (o efeito pretendido pelo autor) esquecendo a vertente do pedido mediato (o direito subjectivo que se pretende tutelar através desse efeito), nem muito menos tomar aquele (qualquer um dos dois, imediato ou mediato) pela integralidade do objecto do processo, esquecendo a causa de pedir (o acto ou facto que constitui a razão jurídica da actuação em juízo). Pois uma noção adequada de objecto do processo deve proceder a uma ligação do pedido e da causa de pedir, considerando-os como dois aspectos do direito substantivo invocado. Pedido e causa de pedir apresentação como verso e reverso da mesma medalha, sendo certo que a medalha de que estas duas perspectivas são as duas faces, é o direito substancial, ou seja, o direito substancial afirmado.

Assim, é certo que o pedido (imediato) da acção de condenação é o que se destina a obter a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um acto que tenha sido ilegalmente omitido ou recusado, e que o “acto devido” é aquele que, na perspectiva do autor, deveria ter sido emitido e não foi, quer tenha havido pura omissão, quer tenha sido praticado um acto que não satisfaça a sua pretensão.

Esta visão do objecto do processo que, de acordo com a lógica tradicional, sobrevaloriza o pedido imediato relativamente ao mediato, poderá não ser susceptível de abarcar a integralidade do objecto da acção de condenação à prática do acto devido, além de se encontrar em desconformidade com as soluções legais.

Ao regular esta subespécie de acção administrativa especial, o CPA valoriza de forma muito evidente (e ao contrário do que era a tradição anterior, de um contencioso marcado pelos traumas da mera anulação e do processo ao acto), o pedido mediato sobre o imediato, adoptando uma concepção ampla de objecto de processo que abrange ainda a consideração da causa de pedir. Pois, se estabelece que tanto quanto quando se está perante um caso de omissão ilegal (mesmo para quem considere que dela resulta um qualquer acto silente) como quando se trata de um caso de acto de conteúdo negativo: o objecto do processo é a pretensão do interessado e não o acto de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta directamente da pronúncia condenatória (art.66º/2 CPA).

Posto isto, podem ser retirados dois resultados:

- O objecto do processo não é nunca o acto administrativo mesmo quando a Administração tinha antes praticado um acto desfavorável para o particular, mas sim o direito do particular a uma determinada conduta da administração, correspondente a uma vinculação legal de agir, ou de actuar de uma determinada maneira (que pode ter lugar mesmo no domínio da discricionariedade – o processo de condenação não é configurado como um processo impugnatório, no sentido em que, mesmo quando tenha havido lugar à prática de um acto de indeferimento, o objecto do processo não se define por referência a esse acto. – Pelo que, é irrelevante a existência ou não de um acto administrativo prévio e, mesmo quando ele exista, a apreciação jurisdicional não incide sobre o acto.

- O objecto do processo corresponde à pretensão do interessado, que o mesmo é dizer, tratando-se de uma acção para defesa de interesses próprios, ao direito subjectivo do particular (pedido mediato), que foi lesado pela omissão ou pela a actuação ilegal da Administração (causa de pedir), pelo que o objecto do processo é o direito subjectivo do particular no quadro da concreta relação jurídica administrativa (substantiva). O código, para referir este objecto do processo, utiliza a expressão, um pouco equivoca do ponto de vista substantivo, “pretensão”. O que está em causa será o direito subjectivo do particular, para cuja defesa actua em juízo e não uma qualquer pretensão, mas cuja a utilização pelo legislador pode-se compreender como sendo destinada a abranger também o objecto do processo quando esteja em causa a acção pública ou a acção popular, que, algo discutivelmente, o legislador quis também consagrar neste meio processual de matriz subjectivista.


João Oliveira
Nº 16708

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