As providências cautelares no âmbito do
contencioso administrativo
No ano de 2000 esperava-se uma
reforma da tutela cautelar das situações jurídicas administrativas.
Pois bem, a tão esperada reforma
surgiu com a nova lei processual administrativa (Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro
com as alterações introduzidas pela Lei 4-A/2003 de 19 de Fevereiro) ou seja, o
CPTA. Esta reforma identifica-se com a realização constitucional, internacional
e comunitária de criação de um sistema de tutela jurisdicional – principal – e
cautelar plena e efectiva.
Ideia de PLENITUDE
A ideia de plenitude traduz-se numa
autonomia formal do sistema criado pelo CPTA relativamente ao Direito
Processual Civil.
Antes da reforma só as providências cautelares do CPC,
aplicáveis com as necessárias adaptações ao processo administrativo, ajudavam a
combater a solidão da suspensão jurisdicional da eficácia, impotente para fazer
face ao desdobramento das formas de actuação administrativa para além do acto
administrativo.
O art. 112º/2 CPTA apresenta um elenco exemplificativo
de providências cautelares que revela a ideia de plenitude.
As providências cíveis e administrativas concorrem em
pé de igualdade, subordinando-se a escolha do julgador ao critério da adequação
(subconcretização do Princípio da Proporcionalidade). Este é o significado que
Carla Amado Gomes dá à fórmula do nº2 do art. 112º do CPTA “ Além das
providências especificadas no CPC, com as adaptações que se justifiquem, nos
casos em que se revelem adequadas”, o juíz administrativo tem à sua disposição
uma profusão de medidas potencialmente aptas a proporcionar tutela cautelar
para as mais variadas situações. A existir qualquer tipo de subsidiariedade
entre providências do CPC e do contencioso administrativo ela ocorrerá dentro da
lógica de um sistema aberto, norteando-se apenas pelo critério de maior
adequação, que, naturalmente, tende a corresponder a melhor tutela (
subsidiariedade material – art. 20º CRP).
A plenitude manifesta-se igualmente
no que toca às modalidades de tutela. Desde logo podem, nos termos do art.
112º/1 CPTA, traduzir-se, quer em medidas de tipo conservatório – as quais
congelam o estado das coisas existentes no momento da apresentação do pedido
até resolução final do litígio – ,quer em medidas de tipo antecipatório – que
activam o desenvolvimento da situação controvertida, alterando o estado de
coisas existentes no momento da apresentação do pedido, consumindo, total ou
parcialmente, o conteúdo da decisão final.
A possibilidade prevista no art. 120º/3 de cumulação
de providências, a requerimento do interessado ou por iniciativa do juíz, após
prévia audição dos interessados é outra das manifestações da plenitude. Esta
manifesta-se igualmente no desdobramento de possibilidades de decretamento
provisório (suspensão provisória de execução do acto administrativo) de acordo
com o art. 131º/1 CPTA ou definitivo (sendo certo que estamos dentro de um
processo de natureza cautelar e como tal confere um conteúdo precário a esta
decisão). A plenitude revela-se ainda na cobertura de todas as
formas de actuação administrativa: acto, regulamento, contrato, operação
material e actuação informal, designadamente avisos ao público.
A LPTA não admitia a suspensão da
eficácia de regulamentos ainda que imediatamente exequíveis. Com o CPTA, não só
é possível pedir a suspensão da eficácia de normas que já tenham sido
desaplicadas em três concretos com fundamento em ilegalidade, no âmbito de um
processo, actual ou futuro, de declaração da sua ilegalidade com força
obrigatória geral (art. 130º/2 e 3), como é também admissível que um
destinatário de uma norma alegadamente ilegal e de efeito imediato lesiva dos
seus direitos, requeira ao tribunal a sua suspensão, com efeitos restritos ao
seu caso (art. 130º/1).
No que toca ao contrato, a protecção
cautelar neste âmbito estava reduzida à suspensão jurisdicional da eficácia dos
actos destacáveis, com todas as insuficiências que lhe eram inerentes. Hoje
introduziu-se processos de tutela sumária e medidas provisórias no contencioso
administrativo de formação dos contratos da Administração. O regime das
providências cautelares do CPTA, em geral, e o art. 132º, em particular,
representação inovações importantes a este nível.
Quanto à protecção cautelar contra
actuações e omissões materiais administrativas ilegais, o CPTA, representa uma
lufada de ar fresco. A articulação com as acções comuns condenatórias potencia
a utilização de providências cautelares não especificadas através das quais o
juíz conforma maior ou menor densidade a actuação administrativa.
O aviso ao público surge como uma
realidade sui generis, a meio caminho entre o acto jurídico e
a operação material, na medida em que os sues efeitos se projectam a nível
psíquico, de esclarecimento ou convencimento do público sobre um determinado
assunto do seu interesse, cuja tutela se encontra a cargo de entidades
administrativas.
A par da intimação para suspensão da difusão do aviso
– caso se prove a não veracidade dos dados divulgados pela Administração, ou
incorrecção parcial da informação difundida – convencer o julgador da
necessidade de emissão de um acto de reposição da verdade, ou pelo menos de
confirmação da incorrecção/falsidade do conteúdo do aviso. Qualquer empresa
alegadamente lesada no seu direito fundamental de iniciativa económica de
poder, não só prevenir o alastramento da informação errónea, como também e
sobretudo, exigir da Administração a reposição da verdade, o mais rapidamente
possível. A intimação para um comportamento instaurada contra a entidade
administrativa decretada provisóriamente ou não abrangendo ambas as vertentes –
conservatória e antecipatória – da tutela cautelar, parece a priovidência mais
adequada a resolver este tipo de situações.
Estes são alguns exemplos que
atestam a plenitude do sistema de protecção cautelar instituído pelo CPTA,
contudo tem uma contrapartida: a COMPLEXIDADE.
Ideia de COMPLEXIDADE
Esta pode ser detectada a três níveis:
A complexidade surge quanto aos
critérios de ponderação da necessidade, adequação e equilíbrio das providências
cujo decretamento se requer. O art. 120º/1 CPTA avança três situações:
a) “actos
manifestamente ilegais” deve entender-se como parâmetro de apoio do julgador na
emissão da medida cautelar requerida. Este decretamento baseia-se num critério
de evidência, que incorpora, em simultâneo, a salvaguarda do interesse público
e a tutela de interesses privados. A evidência da ilegalidade justifica quer a
possibilidade de decretamento provisório da providência (art. 131º/1) quer à
susceptibilidade de antecipação do juízo principal, nos termos do art. 121º do
CPTA. O facto de a ilegalidade que enferma o acto ser ostensiva explica que o
juízo de proporcionalidade quanto à decisão de emissão da medida se constranja
perante a exigência da célere reposição da legalidade. A manifesta ilegalidade
do acto, uma vez demonstrada, vincula o juíz a proferir decisão favorável ao
requerente da medida cautelar.
Quanto a este critério de evidência surgem algumas
dúvidas: será ele apenas aplicável em sede de impugnação de actos, ou também
utilizável perante regulamentos, ante normas contidas em regulamentos,
operações materiais e actuações informais? Quanto aos regulamentos há que
considerar a remissão operada pelo art. 130º/4 para o “disposto no capítulo I”,
“com as adaptações que forem necessárias” e, por outro lado, a necessidade
agravada de correcção das situações de ilegalidade geradas por tais formas de
actuação. Estes são os argumentos que reforçam a possibilidade de “cruzar” o
art. 120º/1 a) com a providência de suspensão de eficácia de normas
regulamentares. Quanto às operações materiais e actuações informais a
“manifesta ilegalidade” é, assim, detectável e atacável, também neste domínio.
b) fora das situações da alínea a) (de ostensiva
ilegalidade) quando se requeira a concessão de providência conservatória ou
antecipatória. Critério de apreciação da necessidade de tutela em função da
procedibilidade da pretensão cautelar. Assim a par da urgência no decretamento
da providência há que aferir:
* estando em causa a parelisação dos efeitos de uma
actuação administrativa, anão manifesta falta de fundamento desta;
* estando em causa a propulsão de efeitos gerda pela
inacção ou actuação administrativa ilegal a procedibilidade provável da
decisão final confirmativa do juízo antixipatório proferido.
A razão da distinção quanto aos critérios de
ponderação da possibilidade de decretamento da providência reside na maior
responsabilização do julgador perante a emissão de uma providência
anticipatória que consumirá, total ou parcialmente, a decisão final. A estes
critérios acrescem a ponderação da sua adequação e do seu equilibrio, nos
termos dos nºs 2 e 3 do art.120º. O julgador está relativamente condicionado:
por um lado, pelo pedido apresentado pelo requerente e, por outro lado, por
ambas as partes, caso queria proceder à substituição e/ou à cumulação de providências,
pois tem que as ouvir previamente. Quanto à proibição de excesso o juíz goza de
uma considerável margem de livre decisão, apenas “limitada” pela obrigação de
fundamentação da decisão (art.659º/2, bem como a alínea b) do nº1 do art.668º,
ambos do CPC), bem como, obviamente, pelo direito de recurso.
O CPTA gizou um esquema de protecção
cautelar teoricamente equilibrado, embora na prática, reconheçamo-lo, susceptível
a desequilibrar mais facilmente a favor da tutela do interesse público.
Sublinhe-se a complexidade ao nível
da articulação entre providências cautelares e restantes processos urgentes,
designadamente, impugnações e intimações:
a) Exemplo da primeira situação é o da
articulação entre as impugnações urgentes de actos administrativos no domínio
do contencioso pré-contratual de formação de contractos de empreitada e
concessão de obras públicas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens
– arts.100º a 103º do CPTA – e as providências cautelares a que se refere o
art. 132º do CPTA. A opção entre estas duas vias – a primeira, sumária; a
segunda, cautelar – decide-se com base no tipo de contracto cujo procedimento
de formação está em causa. O que, à primeira vista, parece um esquema
discriminatório dos intervenientes em contratos que não se reconduzam aos tipos
enunciados nos arts.100º a 103º, os quais ficam privados de um mecanismo de
defesa ultra-rápido. Assim, são configuráveis, em abstracto, duas situações:
- para
os procedimentos pré-contratuais a que alude o nº1 do art.100º do CPTA, os
remédios processuais são: processo sumário + providências cautelares previstas
no art.132º;
- para os procedimentos pré-contratuais que se não
reconduzam à previsão do nº1 do art.100º, os remédios processuais são: acção
administrativa especial de impugnação de actos + providências cautelares nos
termos do art.132º.
b) Um exemplo da segunda situação traduz-se no nexo de
subsidiariedade estabelecido entre a intimação para protecção de direitos,
liberdades, e garantias e a modalidade de decretamento provisório da
providência – arts.109º/1 e 131º/1 do CPTA. Em última análise tal
subsidiariedade resolve-se a partir da densificação dos critérios de possibilidade
e insuficiência avançados pelo nº1 do art.109º.
Em terceiro e último lugar chame-se a atenção para
interpenetrabilidade entre processos acautelares e processos sumários, através
da possibilidade de convolação processual aberta pelo art. 121º do CPTA. Esta
novidade traduz-se em que “quando a manifesta urgência na resolução definitiva
do caso permita concluir que a situação não se compadece com a adopção de uma
simples providência cautelar e tenham sido trazidos ao processo todos os
elementos necessários para o efeito”, o juiz pode, ouvidas as partes por 10
dias, “antecipar o juízo sobre a causa principal” (art. 121º/1).
A aplicação desta disposição será objecto de muitas
cautelas. Estas situações serão avaliadas com uma ponderação acrescida. Esta
decisão é passível de recurso nos termos gerais (art. 121º/2).
A complexidade inerente ao novo
sistema de protecção cautelar é inevitável, sobretudo se o confrontamos com o
regime ainda vigente.
Veremos depois como esta complexidade se traduzirá em
efectividade de tutela.
Em jeito de conclusão, é
importante deixar três notas
de risco:
i. O
risco da inundação da jurisdição administrativa por pedidos cautelares 112º/2
CPTA;
ii. O
risco de sumarização da jurisdição administrativa proporcionado pelo mecanismo
do art. 121º/1 do CPTA;
iii. O
risco de subversão dos critérios de ponderação previstos nos nºs 2 e 3 do art.
120º do CPTA.
A banalização da justiça cautelar será uma tentação
demasiado fácil para os particulares.
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