Da
competência dos tribunais administrativos e fiscais nas acções de responsabilidade
civil de entidades com poderes de autoridade
- O
exemplo das concessionárias-
Tem sido comum nos nossos tribunais a discussão da (in)competência dos
tribunais administrativos e fiscais para conhecimento de determinadas questões,
nomeadamente quando envolvam entidades concessionárias, que gozam e exercem
poderes de autoridade.
Tal é visível, por exemplo, em acções de responsabilidade civil envolvendo
concessionárias, quando está em causa a alegada a violação de normas
enquadráveis no âmbito do direito administrativo, ao abrigo das quais estão
autorizadas a exercer poderes de autoridade. Coloca-se, primeiramente, a
questão de delimitar a causa, de modo a que se conclua pelo enquadramento no
direito administrativo e pelo exercício de poderes de autoridade no caso
concreto. Além disso, a competência dos tribunais terá depois de ser
determinada.
A jurisprudência tem entendido que os tribunais administrativos são os
competentes para situações como a referida.
Veja-se o caso da Estradas de
Portugal, S.A., que permanentemente se vê confrontada com acções de
responsabilidade civil intentadas em tribunais judiciais, quando o deveriam ser
nos tribunais administrativos. A Estradas de Portugal SA é uma sociedade
anónima de capitais públicos, assim transformada pelo Decreto-lei n.º 374/2007
de 7 de Novembro.
Segundo o art. 4º do
Decreto-lei n.º 374/2007, a “EP –
Estradas de Portugal, S.A. tem por objecto a concepção, projecto, construção,
financiamento, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede
rodoviária nacional, nos termos do contrato de concessão que com ela é
celebrado pelo Estado.”
A Estradas de Portugal, S.A. é
ainda uma concessionária de serviços públicos, estando até responsável pela
condução e realização de processos expropriativos. Por outras palavras, a
Estradas de Portugal exerce poderes públicos de autoridade.
Do mesmo modo, as concessionárias de autoestradas que sejam pessoas
colectivas de capitais privados, são concessionárias
dos serviços públicos de concepção, projecto, construção, financiamento,
exploração e conservação de lanços de autoestrada, nos termos definidos em
contratos de concessão vários, acessíveis online.
Face ao exposto, parece ter aplicação nos casos de responsabilidade
civil destas entidades no âmbito dos poderes de autoridade o disposto no art.
4º, nº 1, als. a), d) e i), do ETAF, que determina o seguinte:
“1 – Compete aos tribunais da
jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham
nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos
fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos
particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal
ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de
direito administrativo ou fiscal;
d) Fiscalização da legalidade
das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados,
designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
i) Responsabilidade civil
extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime
específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito
público; “
Do preceito decorre que a jurisdição administrativa é competente
sempre que, sendo a responsabilidade imputada a sujeitos privados, essa
responsabilidade se funde em actos regidos pelo direito público ou, como também
se pode dizer, em actos de autoridade.
Importa ter presente também o que estabelece o art. 1°, n.° 5 da Lei
n.º 67/2007 de 31/12 (diploma que aprovou o regime de responsabilidade civil
extracontratual do Estado e demais entidades públicas):“as disposições que,
na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito
público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por
danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também
aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado
e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais
ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de
prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou
princípios de direito administrativo”
(sublinhado nosso).
Esta disposição leva à aplicação do regime de responsabilidade civil
extracontratual do Estado, no que toca a acções ou omissões levadas a cabo «no exercício de prerrogativas de poder
público» ou que sejam «regulados
por disposições ou princípios de direito administrativo».
Deste modo, desde que as pessoas colectivas de direito privado (e
respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais
ou auxiliares) actuem em moldes de direito público, desenvolvam uma actividade
administrativa, deve aplicar-se às suas acções e omissões o regime de
responsabilidade civil extracontratual do Estado.
No art. 1º, n.° 5 da Lei n.º 67/2007 concretiza-se o disposto no art.
4º, n.° 1, al. i) do ETAF, que atribuiu competência aos tribunais
administrativos e fiscais para apreciar (e decidir) a responsabilidade civil
extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime
específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito
público.
Nos termos do art. 1°, n.° 5 da Lei n.º 67/2007, são dois os factores
determinativos do conceito de actividade administrativa: o primeiro refere-se
ao exercício de prerrogativas de poder público, o que equivale ao desempenho de
tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade; o
segundo respeita a actividades que sejam reguladas por disposições ou
princípios de direito administrativo, o que significa que os respectivos
exercícios deverão ser regulados por disposições ou princípios de direito
administrativo.
Façamos,
no entanto, uma breve referência ao que a jurisprudência tem referido a este
propósito:
A Relação de Lisboa refere, em acórdão de 30 de Junho de 2011, proc. 1394/10.5YXLSB-7, o seguinte:
“Todavia, veio, posteriormente, a determinar-se a aplicação da Lei n.º
67/2007, de 31 de Dezembro, à responsabilidade civil das pessoas colectivas de
direito privado, por acções ou omissões que adoptem no exercício de
prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou
princípios de direito administrativo.
Isto significa que sempre que entidades de direito privado desenvolvam uma actividade administrativa, no que se refere às acções de responsabilidade civil, há um nexo funcional com a Administração Pública. E parece-nos precisamente que é o caso: a R. é uma entidade que goza do exercício de prerrogativas de poder público (por via contrato de concessão), por ter sido incumbida da execução de tarefas públicas e, como tal, investida de poderes de autoridade.
Isto significa que sempre que entidades de direito privado desenvolvam uma actividade administrativa, no que se refere às acções de responsabilidade civil, há um nexo funcional com a Administração Pública. E parece-nos precisamente que é o caso: a R. é uma entidade que goza do exercício de prerrogativas de poder público (por via contrato de concessão), por ter sido incumbida da execução de tarefas públicas e, como tal, investida de poderes de autoridade.
Deste modo, salvo melhor
opinião, afigura-se-nos que a competência material para julgar o pleito
pertence ao Tribunal Administrativo [art.º 4 n.º 1 i) do ETAF e artº1 n.º5 do
Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidade
Públicas, aprovado pela lei n.º 67/2007]." (destaque nosso)
Como bem se lembra também no acórdão do Tribunal da Relação de
Guimarães, de 2 de Julho de 2009, relator Rosa Tching, proc. 2 903/08.5TBVCT-A.G1,
disponível em www.dgsi.pt:
“E, por outro lado, que são dois
os factores indicativos do conceito de actividade administrativa.
Um constituído pelo exercício de
prerrogativas de poder público, ou seja, quando, para a execução de tarefas
públicas de que sejam incumbidas, lhes sejam outorgados poderes de autoridade.
Um outro, pela vinculação do
exercício da actividade a um regime de direito administrativo, isto é, quando
intervenham no exercício de tarefas que sejam reguladas por disposições ou princípios
de direito administrativo.
Significa isto, no dizer de
Carlos Alberto Fernandes Cadilha, que a
submissão de entidades privadas ao regime de responsabilidade civil da
administração terá de ser definida casuisticamente em função da natureza jurídica
dos poderes que tais entidades tenham exercitado em dada situação concreta ou
da sua subordinação a um regime de direito administrativo.
E toda esta dicotomia está
presente nas entidades concessionárias que são chamadas a colaborar com a
Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato
administrativo, que poderá ser um contrato de concessão de obras públicas ou de
serviço público”
No mesmo sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto,
de 3 de Novembro de 2011, relator Mário Fernandes, apelação nº 9806/09.4TBVNG.P1 - 3ª Secção: “Assim, a Ré, enquanto entidade privada
concessionária da aludida autoestrada, foi chamada a colaborar com a
Administração na execução de uma tarefa administrativa de gestão pública – aí
se inserindo os aspectos atinentes à sua exploração, conservação e fiscalização
– através de uma contrato administrativo, a impor que as suas acções e omissões
conexionadas com essa finalidade estejam reguladas por disposições e princípios
de direito administrativo”.
Mais, e como esclarece Vieira de Andrade, in “A justiça administrativa
(Lições), 6ª ed., Coimbra, Almedina, p. 127,
“a alínea i) limita o conhecimento pelos tribunais administrativos das acções
de responsabilidade de sujeitos privados — entre os quais parecem estar
incluídos os entes privados de “mão pública” (os “falsos privados”) e os
privados que exerçam poderes públicos, designadamente os concessionários — em
função da aplicabilidade do regime substantivo específico da responsabilidade
de direito público” (sublinhados nossos).
O CPTA vem prever expressamente a possibilidade de, através de acção
administrativa comum, se pedir a condenação da administração à reparação dos
danos produzidos (art. 37º, nº 2, alínea f)).
Como aqui se procura demonstrar, resulta inequivocamente da lei, e tem
sido o entendimento da doutrina e jurisprudência, que são da competência da
jurisdição administrativa as acções de responsabilidade civil intentadas contra
entidades privadas que gozem de poderes de autoridade, aqui dadas como exemplo
as concessionárias.
Em conclusão, os tribunais
judiciais são materialmente incompetentes em situações como as expostas,
por violação do art. 4º, nº 1, als. a), b) e i), do ETAF, e à luz do regime da
responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Rita Gehl Braz
Nº 16840
Subturma 1, 4º ano Noite
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