Pecado
original – O morder na maçã da árvore do
bem… e do mal.
Foi aqui que a primeira nódoa no fino pano caiu, com a mescla
entre as funções administrativas e jurisdicionais, com juízes domésticos, dado que a “justiça administrativa nasceu dentro
da administração” (Cf. Vasco Pereira da
Silva, «O contencioso no divã da psicanálise», 2009, 2ª edição, Almedina,
p.13), o que acaba por ser, por um lado, uma tendência absolutista de um Estado
que se dizia liberal e, por outro, a principal característica que marcou este
primeiro período da história do contencioso.
Com este primeiro e pequeno
parágrafo, já todos ficámos a saber que a maçã
foi mordida. Resta agora perceber o que motivou
a dentada e em que é que a própria
dentada se consubstanciou. Para tal, teremos de recuar alguns séculos, até
à distante Revolução Francesa
(1789), onde, entre outros, no artigo 3º
da Constituição de 1789 se proibiam os tribunais judiciais de conhecer dos
assuntos da esfera da administração, sob pena de delito, sendo que esta
proibição assentava na teoria da separação de poderes.
Mas como é que é possível
misturarem-se realidades, quando se toma como ponto de partida uma teoria que
as exige separadas?! Pois bem, os revolucionários eram ardilosos,
levando a cabo uma interpretação
heterodoxa desta teoria (Cf. Vasco
Pereira da Silva, ob. cit.), dizendo-se que julgar a administração era ainda administrar, portanto
cabível no poder administrativo, garantindo-se assim, pelo menos em termos aparentes,
uma competente tutela da separação de poderes. Esta ideia partia do
entendimento que Montesquieu tinha
acerca desta teoria, concebida originariamente pelo inglês John Locke. O Barão francês definia o poder judicial como aquele que “pune os crimes e julga sobre os diferendos
entre os particulares”, o que o levava, desta feita, a afastar da
esfera comum os dissensos em matéria administrativa, possibilitando assim,
repetimos, a introdução de um cunho autoritário num domínio de natureza liberal,
pela criação de um foro especial para os assuntos da administração. É esta a dentada na maçã do pecado! A
criação de um “ juiz de trazer por casa”, legitimado por um foro privilegiado
para a administração que, por sua vez, se baseava numa conceção de separação de
poderes defraudatória daquilo que realmente esta representava enquanto modo de
defesa dos particulares face a abusos do poder.
Ainda assim não nos podemos ater
somente com um recuo ate à revolução. É necessário recuar um pouco mais, ao
antigo regime, ao absolutismo ou, nas palavras da regência “ à barriga da mãe”,
sendo de se destacar, sumariamente, quatro razões adicionais que justificaram a
referida mordida:
a)
A
própria conceção de Estado. A
Revolução Francesa leva a cabo uma alteração no paradigma do que até então se
concebia como Estado, onde a referida separação de poderes seria um elemento
crucial. Neste novo paradigma, o que existe por de trás de cada um dos poderes
é este novo entendimento de Estado, como um ente “ todo-poderoso”, que se esconde na sombra da administração e que,
por exigir regras diferentes, em função do seu “tamanho”, justifica a criação
de jurisdição especial que tutela os seus interesses, ao total arrepio dos
direitos subjetivos dos particulares;
b)
Este contencioso especial surge também como
uma reação a um medo do passado, mas não tão distante àquela altura. Os
tribunais do antigo regime. Veja-se que estes tribunais (os
“parlamentos”) foram utilizados pelos revolucionários como uma arma de combate
ao absolutismo régio, nomeadamente com a utilização de expedientes como as
censuras ou o veto do tribunal em relação às decisões do monarca. Mas como
estas armas se mostraram tão eficazes, entenderam os revolucionários,
suprimi-los, a fim de se evitar que os tribunais colocassem ao Estado liberal,
o mesmo entraves que colocaram ao absoluto e com a justificação de que à data o
poder já estava entregue em boas mãos;
c)
Evidencia-se
também neste modelo contencioso, uma herança
genética face ao regime absolutista de algumas instituições. O Conselho de
Estado mais não é do que o irmão liberal
gémeo o Conselho do Rei, criado pelo monarca para ceifar ao controlo dos
tribunais judiciais assuntos de grande monta para a coroa francesa. Enfim,
quanto a esta matéria, o liberalismo não foi tanto original quanto poderia ter
sido;
d)
Por
último, existe ainda uma “continuidade de técnicas e instrumentos jurídicos de
controlo da administração, antes e depois da Revolução” (cf. Cf. Vasco Pereira da Silva, ob. cit. p. 24.) A
técnica de vícios do ato administrativo era já conhecida dos tribunais do
antigo regime. Pelo que o contencioso administrativo em nada criou nesta
matéria. Diga-se ainda que esta continuidade não se denotava apenas quanto a
instrumentos jurídicos, mas também ao corpo de magistrados que continuaram nos
seus cargos após a instituição do Estado liberal em França. Desta feita, não
espanta que a originalidade de soluções não abunde nesta fase.
Por fim, já em jeito de
despedida, cabe fazer uma pequena menção à evolução do sistema de
“juiz-administrador” em França, destacando, três períodos:
a)
De
1789 a1799 - Este
é, pensamos, o período onde o pecado exposto acima mais se fez notar, visto que
a resolução de litígios sobre questões que envolvessem a administração eram
remetidas para órgão administrativos. Este período caracteriza-se assim,
tomando a expressão de Garcia De Enterria,
citado pela regência no seu divã,
pela “isenção
judicial da administração”;
b)
1799
A 1872 –
surge o modelo denominado de justiça-reservada.
Nesta fase um órgão da administração consultiva, o Conselho de Estado,
emitia pareceres que estariam sujeitos a homologação do Executivo;
c) De
1872 em diante – Consagra-se o modelo de justiça delegada. Aqui, as decisões do Conselho de Estado
não tinham já a mera força de pareceres, eram definitivas, eficácia que lhes
era atribuída por delegação de poderes do executivo. Esta fase, pode bem
dizer-se, surge como o aperfeiçoamento do sistema do administrador-juiz, uma vez que, embora pareceres, as decisões do
Conselho de Estado, antes de 1872 eram já de tal maneira técnico-juridicamente
aprumadas que raramente não eram homologadas.
Uma última chamada de atenção
para o facto de, embora ter existido evolução quanto ao modo de organização do
contencioso, não se passa em nenhuma destas fases, a ter um sistema
jurisdicionalizado, nem mesmo com o modelo de justiça delegada, dado que o que legitima o carácter definitivo das
decisões do Conselho de Estado é uma delegação de poderes. Isto tem
como consequência, a possibilidade de avocação de poderes a qualquer momento,
retornando-se assim rapidamente ao modelo de justiça reservada; o estatuto do
Conselho de Estado continua a ser o de órgão
da administração; até 1889, com o caso Cadot, as decisões do
Conselho de Estado tem a natureza de recursos de apelação das decisões do
Ministro;
Elaborou-se ainda uma tabela
comparativa da evolução do sistema de administrador-juiz
nos principais Estados europeus, partindo das coordenadas que a regência no seu divã (p. 46-51) nos fornece.
Alemanha
|
Itália
|
Espanha
|
Portugal
|
v 1ª Metade Séc. XIX:
Ø Predomina
sistema de administrador-juiz, na forma de Justiça reservada;
v 2ª Metade Séc.
XIX:
Ø Existência de dois sistemas:
§ A norte: Sistema de Administrador-
juiz, no formato de justiça
delegada, sendo o controlo administrativo feito em termos objetivos,
portanto coisificando-se os
particulares;
§ A sul: forma-se,
progressivamente, um contencioso de pendor jurisdicionalizado, assente
numa tutela subjetiva dos
direitos dos particulares.
|
v
Antes da
unificação italiana:
Ø
Modelo de administrador-juiz, à boa maneira francesa;
v
Após
unificação de Itália:
Ø
Consagra-se uma modelo de dupla jurisdição que, na prática, não era mais do que uma salada russa de jurisdições,
partindo-se de uma distinção artificial entre direitos subjetivos e interesses
legítimos, para se tentar conciliar o inconciliável.
|
v
Constituição
de Baiona, em 1808:
Ø
Modelo francês, tendo-se mais tarde, em 1845,
adotado um sistema de justiça reservada;
Ø
O sistema muda, em 1888, com a Lei Santamaria de Paredes, passando
assim a vigorar uma sistema de justiça delegada.
|
v
Decreto nº 23,
de 16 de Maio de 1832:
Ø
Introduz-se me Portugal o modelo francês de
contencioso, pela pena de Mouzinho da Silveira:
§
Proibição para tribunais comuns de julgarem a
administração;
§
Instituição Conselhos de Prefeitura e de Estado;
v
De 1832 a
1933:
Ø
Período de especial dúvida quanto ao melhor modelo
a utilizar, se o de tribunais administrativos (justiça reservada) se
o de tribunais judiciais.
v
De 1933 a
1976:
Ø
Sistema de justiça reservada, embora não de
forma declarada. Atente-se ao facto de já existir o Supremo Tribunal Administrativo
e Auditorias Administrativas, pese embora fossem concebidos como
órgãos da administração com funções jurisdicionais, por três razões:
§
Estes tribunais,
faziam parte da organização da Presidência do Conselhos de Ministros, “não se
perdendo assim a ligação ‘umbilical’ à administração, típica dos sistemas de
‘administrador-juiz’” (Cf. Vasco
Pereira da Silva, Ob. Cit., p. 50);
§
Governo nomeava e demitia os juízes;
§
Não existiam modo de execução das sentenças, o que
levava decisões só fossem acatadas “ se
desse jeito”.
|
Baptismo
Todo o
pecador deve sentir no seu percurso o chamamento à ascética, de modo a iniciar
o seu caminho de conversão. Também o Contencioso Administrativo teve de percorrer
inevitável caminho, ainda que inicialmente a sua conversão não fosse total,
conseguiu chegar a um estado de graça considerável. Cabe então analisar como
recebeu o seu primeiro sacramento: O
Baptismo.
O grande
passo desta conversão foi a natureza jurisdicional. Como conversão séria e
empenhada, foi acompanhada de um "duplo milagre [...] a criação do
Direito Administrativo como a transformação de um «quase-tribunal» num
verdadeiro Tribunal" (Vasco
Pereira da Silva, O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise).
Como militante acérrimo, rendeu-se aos encantos do controlo dos tribunais (ainda
que inicialmente de modo tímido) deixando a sua vida de pecado e abraçando a
missão que lhe foi confiada pelo baptismo: a defesa dos direitos dos
particulares.
Não
pense o leitor que tudo se passou rapidamente, a "infância difícil"
e os hábitos de uma vida de pecado não são fáceis de ultrapassar. Foi na sua
primeira confissão («Arrêt Blanco»),
que firmou a sua convicção profunda necessidade de um direito próprio, mas
mantendo ainda alguma lógica de protecção da sua tão querida administração.
Apesar deste pequeno deslize, "Deus escreveu Direito Administrativo
por linhas tortas" (Vasco
Pereira da Silva, O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise).
Também é
verdade que o contencioso viu a sua missão facilitada, em parte, pela nova
noção de Estado: o Estado Social. Se anteriormente, a Administração fazia valer
os seus próprios interesses, vê-se nos finais do século XIX e inícios do Século
XX obrigada a prosseguir fins sociais, fins que seriam prosseguidos pela
administração. Ora, por mais irónico que pareça, a Administração vê-se forçada
a "prestar
os seus serviços aos particulares", cumprindo a sua missão apostólica de criação de relações
jurídicas. Com o "Baptismo" a Administração
relaciona-se com os particulares e estes colaboram com ela, sendo titulares de
posições subjectivas, isto é, "posições substantivas de
vantagem" (Vasco Pereira
da Silva, O Contencioso... o autor defende que tais posições devem ser
apelidadas de direitos subjectivos, contrariamente à tripartição: direitos
subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos).
A lógica
dos Mandamentos que regem a actuação da administração também se alterou, deixou
de ser:” Não agredirás a esfera dos
particulares" (vertente negativa), para "Actuarás com fundamento na Lei e dentro dos seus limites", passando
a existir "Reserva de Lei". A Administração passa neste
contexto a ter de lidar com um Poder Jurisdicionalizado com competência para
controlar a sua actividade. Actividade, que passa também a ser exercida em
moldes substancialmente diversos, deixando de estar concentrada passando a
existir uma "repartição de
competências decisórias entre os diferentes órgãos administrativos".
Para
melhor realizar o seu percurso ascético, o acto administrativo teve de aprender
a conviver e a dividir espaço com outras formas de actuação (regulamentos,
planos, os contratos, as actuações informais, técnicas de direito privado, as
operações materiais), passando da "Farda única do acto administrativo [...]
para o moderno pronto-a-vestir". (Vasco Pereira da Silva, O
Contencioso...)
Confirmação- Da timidez à
convicção
Todo
aquele que se baptiza e inicia a sua caminhada livre do pecado original pode,
após alguns anos confirmar os votos do início da sua caminhada. É neste sentido
que se assiste à plena concretização da jurisdicionalização do Contencioso
Administrativo, uma vez que o juiz passa a gozar de plenos poderes em face da Administração.
A plenitude da sua missão é de tutela dos direitos dos particulares baseada nas
relações jurídicas que desenvolvem com a Administração ("Contencioso com dupla dimensão: Subjectiva e
jurisdicional").
A
confirmação plena do modelo programado no Baptismo, vem contrariar a lógica
existente que tinha o Direito Administrativo como anterior ao Direito
Constitucional, na célebre frase de Otto Mayer: " O Direito Constitucional
passa e o Direito Administrativo fica". O pecado original pode ser de tal maneira forte, que se cai
na tentação, e não se consegue fugir a uma mudança mais fácil: que pode ser
mudar a Constituição ao invés de mudar a Administração. As exigências de um
recém confirmado impõem que exista uma "Dupla Dependência" em que o Direito Constitucional dependa
do Direito Administrativo, mas também o Direito Administrativo dependa da
Constituição.
Como
sempre, um confirmado deve manter a consciência de que um poder superior o
guarda. E, dessa forma deve atender a novas realidades como a União Europeia e
aos instrumentos por si emanados. A União Europeia tem emanado instrumentos
sobre várias matérias e que visam a uniformização das regras administrativas.
Assim sendo, a noção de Administração não pode ter por base a qualidade dos
sujeitos, mas sim as atribuições por estes exercidas. Mas não só, o próprio
acto administrativo entendido até então como aquele que é emanado por órgãos
públicos, passa também a poder ser emanado por particulares. Tal como refere o
Sr. Professor Vasco Pereira da Silva, houve uma adopção da lógica de
constitucionalização para o Direito Europeu, podendo falar-se de um Direito
Europeu Administrativo Democratizado, onde existe novamente uma dupla
dependência entre o Direito da União Europeia e O direito Administrativo, deste
logo porque aquele necessita da Administração Pública nacional para se
realizar.
Esta
lógica vem a sofrer alterações devido ao facto de se ter atingido o limite
máximo de actuação da administração e das potencialidades do Estado Social. As
concepções e os paradigmas modificam-se, incluindo-se no barco dos Direitos
Fundamentais as realidades económicas. Essa consciencialização do limite da
administração leva ao aparecimento da administração intra-estadual, e a novas
formas de actuação como o Acto com eficácia mútua, parâmetros caracterizadores
já de um Estado Pós-Social.
Alemanha
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Itália
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Espanha
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Portugal
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França
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Inglaterra
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Ana Rita Rechestre Ferreira 16493
Bruno Gonçalves De Zêzere Barradas 16526
Pedro Luís de Sousa Antunes 18348
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