domingo, 11 de março de 2012

Confissões de um pecador chamado Contencioso...


Pecado original – O morder na maçã da árvore do bem… e do mal.

            Foi aqui que a primeira nódoa no fino pano caiu, com a mescla entre as funções administrativas e jurisdicionais, com juízes domésticos, dado que a “justiça administrativa nasceu dentro da administração” (Cf. Vasco Pereira da Silva, «O contencioso no divã da psicanálise», 2009, 2ª edição, Almedina, p.13), o que acaba por ser, por um lado, uma tendência absolutista de um Estado que se dizia liberal e, por outro, a principal característica que marcou este primeiro período da história do contencioso.
            Com este primeiro e pequeno parágrafo, já todos ficámos a saber que a maçã foi mordida. Resta agora perceber o que motivou a dentada e em que é que a própria dentada se consubstanciou. Para tal, teremos de recuar alguns séculos, até à distante Revolução Francesa (1789), onde, entre outros, no artigo 3º da Constituição de 1789 se proibiam os tribunais judiciais de conhecer dos assuntos da esfera da administração, sob pena de delito, sendo que esta proibição assentava na teoria da separação de poderes.
Mas como é que é possível misturarem-se realidades, quando se toma como ponto de partida uma teoria que as exige separadas?! Pois bem, os revolucionários eram ardilosos, levando a cabo uma interpretação heterodoxa desta teoria (Cf. Vasco Pereira da Silva, ob. cit.), dizendo-se que julgar a administração era ainda administrar, portanto cabível no poder administrativo, garantindo-se assim, pelo menos em termos aparentes, uma competente tutela da separação de poderes. Esta ideia partia do entendimento que Montesquieu tinha acerca desta teoria, concebida originariamente pelo inglês John Locke. O Barão francês definia o poder judicial como aquele que “pune os crimes e julga sobre os diferendos entre os particulares”, o que o levava, desta feita, a afastar da esfera comum os dissensos em matéria administrativa, possibilitando assim, repetimos, a introdução de um cunho autoritário num domínio de natureza liberal, pela criação de um foro especial para os assuntos da administração. É esta a dentada na maçã do pecado! A criação de um “ juiz de trazer por casa”, legitimado por um foro privilegiado para a administração que, por sua vez, se baseava numa conceção de separação de poderes defraudatória daquilo que realmente esta representava enquanto modo de defesa dos particulares face a abusos do poder.      
Ainda assim não nos podemos ater somente com um recuo ate à revolução. É necessário recuar um pouco mais, ao antigo regime, ao absolutismo ou, nas palavras da regência “ à barriga da mãe”, sendo de se destacar, sumariamente, quatro razões adicionais que justificaram a referida mordida:
a)      A própria conceção de Estado. A Revolução Francesa leva a cabo uma alteração no paradigma do que até então se concebia como Estado, onde a referida separação de poderes seria um elemento crucial. Neste novo paradigma, o que existe por de trás de cada um dos poderes é este novo entendimento de Estado, como um ente “ todo-poderoso”, que se esconde na sombra da administração e que, por exigir regras diferentes, em função do seu “tamanho”, justifica a criação de jurisdição especial que tutela os seus interesses, ao total arrepio dos direitos subjetivos dos particulares;
b)       Este contencioso especial surge também como uma reação a um medo do passado, mas não tão distante àquela altura. Os tribunais do antigo regime. Veja-se que estes tribunais (os “parlamentos”) foram utilizados pelos revolucionários como uma arma de combate ao absolutismo régio, nomeadamente com a utilização de expedientes como as censuras ou o veto do tribunal em relação às decisões do monarca. Mas como estas armas se mostraram tão eficazes, entenderam os revolucionários, suprimi-los, a fim de se evitar que os tribunais colocassem ao Estado liberal, o mesmo entraves que colocaram ao absoluto e com a justificação de que à data o poder já estava entregue em boas mãos;
c)      Evidencia-se também neste modelo contencioso, uma herança genética face ao regime absolutista de algumas instituições. O Conselho de Estado mais não é do que o irmão liberal gémeo o Conselho do Rei, criado pelo monarca para ceifar ao controlo dos tribunais judiciais assuntos de grande monta para a coroa francesa. Enfim, quanto a esta matéria, o liberalismo não foi tanto original quanto poderia ter sido;
d)      Por último, existe ainda uma “continuidade de técnicas e instrumentos jurídicos de controlo da administração, antes e depois da Revolução” (cf. Cf. Vasco Pereira da Silva, ob. cit. p. 24.) A técnica de vícios do ato administrativo era já conhecida dos tribunais do antigo regime. Pelo que o contencioso administrativo em nada criou nesta matéria. Diga-se ainda que esta continuidade não se denotava apenas quanto a instrumentos jurídicos, mas também ao corpo de magistrados que continuaram nos seus cargos após a instituição do Estado liberal em França. Desta feita, não espanta que a originalidade de soluções não abunde nesta fase.

Por fim, já em jeito de despedida, cabe fazer uma pequena menção à evolução do sistema de “juiz-administrador” em França, destacando, três períodos:
a)      De 1789 a1799 - Este é, pensamos, o período onde o pecado exposto acima mais se fez notar, visto que a resolução de litígios sobre questões que envolvessem a administração eram remetidas para órgão administrativos. Este período caracteriza-se assim, tomando a expressão de Garcia De Enterria, citado pela regência no seu divã, pela “isenção judicial da administração”;
b)      1799 A 1872 – surge o modelo denominado de justiça-reservada. Nesta fase um órgão da administração consultiva, o Conselho de Estado, emitia pareceres que estariam sujeitos a homologação do Executivo;
c)       De 1872 em diante – Consagra-se o modelo de justiça delegada. Aqui, as decisões do Conselho de Estado não tinham já a mera força de pareceres, eram definitivas, eficácia que lhes era atribuída por delegação de poderes do executivo. Esta fase, pode bem dizer-se, surge como o aperfeiçoamento do sistema do administrador-juiz, uma vez que, embora pareceres, as decisões do Conselho de Estado, antes de 1872 eram já de tal maneira técnico-juridicamente aprumadas que raramente não eram homologadas.
Uma última chamada de atenção para o facto de, embora ter existido evolução quanto ao modo de organização do contencioso, não se passa em nenhuma destas fases, a ter um sistema jurisdicionalizado, nem mesmo com o modelo de justiça delegada, dado que o que legitima o carácter definitivo das decisões do Conselho de Estado é uma delegação de poderes. Isto tem como consequência, a possibilidade de avocação de poderes a qualquer momento, retornando-se assim rapidamente ao modelo de justiça reservada; o estatuto do Conselho de Estado continua a ser o de órgão da administração; até 1889, com o caso Cadot, as decisões do Conselho de Estado tem a natureza de recursos de apelação das decisões do Ministro;
Elaborou-se ainda uma tabela comparativa da evolução do sistema de administrador-juiz nos principais Estados europeus, partindo das coordenadas que a regência no seu divã (p. 46-51) nos fornece.

Alemanha
Itália
Espanha
Portugal

v  1ª Metade Séc. XIX:
Ø  Predomina sistema de administrador-juiz, na forma de Justiça reservada;

v  2ª Metade Séc. XIX:
Ø  Existência de dois sistemas:
§  A norte: Sistema de Administrador- juiz, no formato de justiça delegada, sendo o controlo administrativo feito em termos objetivos, portanto coisificando-se os particulares;
§  A sul: forma-se, progressivamente, um contencioso de pendor jurisdicionalizado, assente numa tutela subjetiva dos direitos dos particulares.  



v  Antes da unificação italiana:
Ø  Modelo de administrador-juiz, à boa maneira francesa;
v  Após unificação de Itália:
Ø  Consagra-se uma modelo de dupla jurisdição que, na prática, não era mais do que uma salada russa de jurisdições, partindo-se de uma distinção artificial entre direitos subjetivos e interesses legítimos, para se tentar conciliar o inconciliável.    

v  Constituição de Baiona, em 1808:
Ø  Modelo francês, tendo-se mais tarde, em 1845, adotado um sistema de justiça reservada;
Ø  O sistema muda, em 1888, com a Lei Santamaria de Paredes, passando assim a vigorar uma sistema de justiça delegada.      

v  Decreto nº 23, de 16 de Maio de 1832:
Ø  Introduz-se me Portugal o modelo francês de contencioso, pela pena de Mouzinho da Silveira:
§  Proibição para tribunais comuns de julgarem a administração;
§  Instituição Conselhos de Prefeitura e de Estado;
v  De 1832 a 1933:
Ø  Período de especial dúvida quanto ao melhor modelo a utilizar, se o de tribunais administrativos (justiça reservada) se o de tribunais judiciais.
v  De 1933 a 1976:
Ø  Sistema de justiça reservada, embora não de forma declarada. Atente-se ao facto de já existir o Supremo Tribunal Administrativo e Auditorias Administrativas, pese embora fossem concebidos como órgãos da administração com funções jurisdicionais, por três razões:
§  Estes tribunais, faziam parte da organização da Presidência do Conselhos de Ministros, “não se perdendo assim a ligação ‘umbilical’ à administração, típica dos sistemas de ‘administrador-juiz’” (Cf. Vasco Pereira da Silva, Ob. Cit., p. 50);
§  Governo nomeava e demitia os juízes;
§  Não existiam modo de execução das sentenças, o que levava decisões só fossem acatadas “ se desse jeito”.       




Baptismo


Todo o pecador deve sentir no seu percurso o chamamento à ascética, de modo a iniciar o seu caminho de conversão. Também o Contencioso Administrativo teve de percorrer inevitável caminho, ainda que inicialmente a sua conversão não fosse total, conseguiu chegar a um estado de graça considerável. Cabe então analisar como recebeu o seu primeiro sacramento: O Baptismo.

O grande passo desta conversão foi a natureza jurisdicional. Como conversão séria e empenhada, foi acompanhada de um "duplo milagre [...] a criação do Direito Administrativo como a transformação de um «quase-tribunal» num verdadeiro Tribunal" (Vasco Pereira da Silva, O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise). Como militante acérrimo, rendeu-se aos encantos do controlo dos tribunais (ainda que inicialmente de modo tímido) deixando a sua vida de pecado e abraçando a missão que lhe foi confiada pelo baptismo: a defesa dos direitos dos particulares.

Não pense o leitor que tudo se passou rapidamente, a "infância difícil" e os hábitos de uma vida de pecado não são fáceis de ultrapassar. Foi na sua primeira confissão («Arrêt Blanco»), que firmou a sua convicção profunda necessidade de um direito próprio, mas mantendo ainda alguma lógica de protecção da sua tão querida administração. Apesar deste pequeno deslize, "Deus escreveu Direito Administrativo por linhas tortas" (Vasco Pereira da Silva, O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise).
Também é verdade que o contencioso viu a sua missão facilitada, em parte, pela nova noção de Estado: o Estado Social. Se anteriormente, a Administração fazia valer os seus próprios interesses, vê-se nos finais do século XIX e inícios do Século XX obrigada a prosseguir fins sociais, fins que seriam prosseguidos pela administração. Ora, por mais irónico que pareça, a Administração vê-se forçada a "prestar os seus serviços aos particulares", cumprindo a sua missão apostólica de criação de relações jurídicas. Com o "Baptismo" a Administração relaciona-se com os particulares e estes colaboram com ela, sendo titulares de posições subjectivas, isto é, "posições substantivas de vantagem" (Vasco Pereira da Silva, O Contencioso... o autor defende que tais posições devem ser apelidadas de direitos subjectivos, contrariamente à tripartição: direitos subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos).

A lógica dos Mandamentos que regem a actuação da administração também se alterou, deixou de ser:” Não agredirás a esfera dos particulares" (vertente negativa), para "Actuarás com fundamento na Lei e dentro dos seus limites", passando a existir "Reserva de Lei". A Administração passa neste contexto a ter de lidar com um Poder Jurisdicionalizado com competência para controlar a sua actividade. Actividade, que passa também a ser exercida em moldes substancialmente diversos, deixando de estar concentrada passando a existir uma "repartição de competências decisórias entre os diferentes órgãos administrativos".

Para melhor realizar o seu percurso ascético, o acto administrativo teve de aprender a conviver e a dividir espaço com outras formas de actuação (regulamentos, planos, os contratos, as actuações informais, técnicas de direito privado, as operações materiais), passando da "Farda única do acto administrativo [...] para o moderno pronto-a-vestir". (Vasco Pereira da Silva, O Contencioso...)


Confirmação- Da timidez à convicção

Todo aquele que se baptiza e inicia a sua caminhada livre do pecado original pode, após alguns anos confirmar os votos do início da sua caminhada. É neste sentido que se assiste à plena concretização da jurisdicionalização do Contencioso Administrativo, uma vez que o juiz passa a gozar de plenos poderes em face da Administração. A plenitude da sua missão é de tutela dos direitos dos particulares baseada nas relações jurídicas que desenvolvem com a Administração ("Contencioso com dupla dimensão: Subjectiva e jurisdicional").

A confirmação plena do modelo programado no Baptismo, vem contrariar a lógica existente que tinha o Direito Administrativo como anterior ao Direito Constitucional, na célebre frase de Otto Mayer: " O Direito Constitucional passa e o Direito Administrativo fica". O pecado original pode ser de tal maneira forte, que se cai na tentação, e não se consegue fugir a uma mudança mais fácil: que pode ser mudar a Constituição ao invés de mudar a Administração. As exigências de um recém confirmado impõem que exista uma "Dupla Dependência" em que o Direito Constitucional dependa do Direito Administrativo, mas também o Direito Administrativo dependa da Constituição.

Como sempre, um confirmado deve manter a consciência de que um poder superior o guarda. E, dessa forma deve atender a novas realidades como a União Europeia e aos instrumentos por si emanados. A União Europeia tem emanado instrumentos sobre várias matérias e que visam a uniformização das regras administrativas. Assim sendo, a noção de Administração não pode ter por base a qualidade dos sujeitos, mas sim as atribuições por estes exercidas. Mas não só, o próprio acto administrativo entendido até então como aquele que é emanado por órgãos públicos, passa também a poder ser emanado por particulares. Tal como refere o Sr. Professor Vasco Pereira da Silva, houve uma adopção da lógica de constitucionalização para o Direito Europeu, podendo falar-se de um Direito Europeu Administrativo Democratizado, onde existe novamente uma dupla dependência entre o Direito da União Europeia e O direito Administrativo, deste logo porque aquele necessita da Administração Pública nacional para se realizar.

Esta lógica vem a sofrer alterações devido ao facto de se ter atingido o limite máximo de actuação da administração e das potencialidades do Estado Social. As concepções e os paradigmas modificam-se, incluindo-se no barco dos Direitos Fundamentais as realidades económicas. Essa consciencialização do limite da administração leva ao aparecimento da administração intra-estadual, e a novas formas de actuação como o Acto com eficácia mútua, parâmetros caracterizadores já de um Estado Pós-Social. 

Alemanha
Itália
Espanha
  •                Constituição de Weimar: sistema jurisdicionalizado, um contencioso com natureza subjectiva.


  •   Nacional-Socialismo: regresso ao contencioso de tipo objectivo, com uma “politização” da justiça administrativa;


  •   Pós II GG: Constitucionalização de uma jurisdição administrativa para protecção efectiva dos direitos dos particulares;


  •   Art. 19.º, n.º4 Lei Fundamental Alemã;

  •   1907: O Conselho de Estado como verdadeiro tribunal;


  •   Lei n.º 2840: instituí uma jurisdição autónoma administrativa;


  •   Reforma de 1971: Criação de Tribunais Administrativos Regionais; 


  •   Lei Maura 1904: Criação da “Sala de Contencioso Administrativo no STJ”, os tribunais administrativos são Tribunais especiais dentro de uma jurisdição comum;


  •   Sr. Prof. VPS: “entre os sistemas da mesma família, que melhor foi capaz de superar os traumas do contencioso privativo da administração, integrando não só no poder judicial, mas também numa única jurisdição”;

























Portugal
França
Inglaterra
  •   Const. De 33: adopção do sistema de justiça delegada;


  •  Baptismo/Confirmação: em Portugal são contemporâneas, a jurisdicionalização só acontece com a Constituição de 76;


  •   Constituição de 76: Art. 202.º e 212.º e 268.º Reconhecimento de direitos dos particulares;


  •   Baptismo: Dá-se com o Estado Social e a sua implementação.

  •   Revolução Francesa: a génese da “infância difícil” do Direito Administrativo;


  •   Acórdão Blanco: afirmação da especificidade do Direito Administrativo, e a insuficiência das regras do direito civil;


  •   Papel determinante do Conselho de Estado na autonomização do poder administrativo: “Self-made court, à maneira dos self-made men”;


  •   Lei 24 de Maio de 1872: Passagem de um sistema de justiça reservada para um sistema de justiça delegada, mas com intima ligação ao “administrador-juiz”;


  •       Acórdão Cadot: 1889 abandono da doutrina ministro-juiz e consideração do Conselho de Estado como a primeira instância administrativa;


  •    Sentença Constitucional de 1980 e 1987: consagração expressa da identidade de natureza dos tribunais comuns e dos tribunais administrativos e a independência carácter específico destes como princípio fundamental reconhecido pelas leis da república;

  •   Infância Feliz: Ausência de acontecimentos e concepções que tenham traumatizado o Direito Administrativo.


  •   Paridade: Administração Pública é sujeito privado titular dos mesmo direitos que os particulares.


  •   Tribunals: no século XX, autoridades administrativas com poderes de autotutela das suas decisões -“Os poderes públicos Britânicos começaram a criar e a aplicar Direito sem darem por isso”;


  •   OBS: existe controlo da administração pelos tribunais comuns, mas o Juiz limita a sua apreciação no domínio do poder discricionário- “Corpo que não condiz com a imagem […] o juiz autolimita (self-restraint) a sua apreciação no domínio do poder discricionário e tende a predominar um entendimento da discricionariedade, que torna menos efectivo o controlo judicial.”


  •   “O sistema britânico, que não enfermou do pecado original, sofre agora de uma espécie de delinquência senil precoce”;






























































Ana Rita Rechestre Ferreira 16493
Bruno Gonçalves De Zêzere Barradas 16526
Pedro Luís de Sousa Antunes 18348




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